Ao estagiário da Nascente

por Gabriel Schincariol*

Hoje se inicia a adaptação da nova turma de alunos da EPCAR, e com esse início um sentimento não tão novo toma conta de mim. Eu sinto, e perdoem a demagogia, a mesma sensação do dia 04/02/2012. A mesma apreensão, o mesmo medo. A diferença é que agora esses sentimentos são apenas uma nostalgia, e eu me sinto confortável em transformá-los num pequeno texto que a alguém possa interessar.

Os garotos que hoje adentram o portão da guarda para saírem, em 3 semanas, homens, são o meu reflexo. O reflexo de cada um dos meus companheiros de turma e de farda. De cada um que, durante os mais de 60 anos de EPCAR, entraram com suas calças jeans e camisas brancas e saíram utilizando uma farda azul que, de forma poética, não se limita apenas a uma vestimenta e passa a fazer parte da nossa própria essência. E a partir daqui gostaria de expressar o que foi, para mim, os dias que seguiram aquele 04/02/2012.

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No primeiro dia de adaptação, um domingo ensolarado, eu estava em um hotel – onde o Barros e outros estagiários também se hospedaram. Acordei antes dos que me acompanhavam, não era mais do que 6 horas da manhã. Passei alguns minutos encarando o teto, pensando em como minha vida estava prestes a mudar. Como eu tinha alcançado um objetivo e como essa realidade me assustava. Eu sentia medo, orgulho, apreensão. Queria chorar e sorrir, e nem ao menos tinha começado. Quando o despertador tocou, escondi estes sentimentos todos – que é do meu feitio – e levantei-me da cama. Fui fazer uma barba que eu nem tinha e, de novo, me senti assustado com aquela cena do rosto cheio de creme de barbear, praticamente um ritual. Coloquei o “bichoforme”, que consistia de uma calça jeans azul, um cinto preto de couro, uma camiseta branca olímpica e um boné azul. Desci para o café da manhã, encontrei alguns futuros irmãos de turma e comi, mas sem sentir muito o gosto. Conversei com alguns daqueles que seriam, hoje, as pessoas com quem mais posso contar na vida. Mantovani, Barros… Todos com malas grandes, uma tábua de passar na mão. E assim seguimos em grupo até o portão da guarda, onde num muro ao fundo escrevia-se “EPCAR – Nascente do poder aéreo”.

Ao passar por aquele portão, de novo me vi num oceano de sentimentos estranhos e incontroláveis. Um aluno da cadeia de liderança acompanhou os estagiários e familiares para o “Pátio da Rodoviária”, onde receberíamos nossos nomes de guerra e números de classificação. Chegando lá, alguns sargentos e oficiais instruíam os novatos para dirigirem-se as mesas. Chegando a minha vez, o sargento leu meu nome, sorriu e e disse: -“pois é… Seu nome de guerra é Schincariol” – com um sorriso, e o nome que viria a ser mudado – “e seu número é 089, seja bem vindo à EPCAR”.  Aquilo estava tornando-se muito real.

Alguns alunos aproximaram-se do nosso grupo e ofereceram-se para levar as malas para os alojamentos e nos instalar em nossos armários e camas. “Quão educados”, pensei. E ai a realidade entrou no lugar da apreensão. O aluno que me acompanhou é um dos que eu respeitei e respeito, hoje, dentro da EPCAR. Ele entrou no alojamento com minha mala, chegou à frente do meu armário e soltou no chão. Disse, sem se alterar e sem exceder-se, “a partir de agora é ‘sim, senhor’, ‘não, senhor’ e ‘quero ir embora’. Entendido?” Respondi com um “sim, senhor”. Ensinou-me a posição de sentido e disse que quando chamado, eu deveria responder com meu nome de guerra “SCHINCARIOL”, em alto e bom som. Fez-me repetir isso algumas vezes, gritando o mais alto possível. Então me repreendeu por deixar as mãos para trás, pois ele ainda não havia me dito para fazer aquilo. E, em seguida, me instruiu sobre o descansar. Deu-me um papel sobre o material que eu estava recebendo. Disse-me para ler. Comecei “2 colchas…” e ele logo repreendeu: “NÃO! Eu disse tudo”. Eu recomecei “Ministério da Defesa…”. Ao terminar de ler, disse-me para pegar os cadeados na mala e trancar o armário com o que fosse preciso dentro. Eu estava nervoso e com as mãos trêmulas, e não conseguia achar os malditos cadeados. Ele olhou para mim e disse: “você tem 30 segundos para achar os cadeados e trancar o armário.” Eu resolvi jogar tudo pra fora, até encontrar os cadeados. Eu nem ao menos conseguia abri-los e ele resolveu me ajudar a soltar a chave. Feito isso, mandou que eu voltasse lá para baixo para ficar com os familiares e aguardar novas instruções.

Quando voltávamos do alojamento, todos os pais falavam a mesma coisa “por que essa cara?” ou, “por que todos estão assim, sérios?”. Eles não sabiam, mas a realidade acabava de bater na nossa cara e as certezas já não eram mais tão certas assim.

Os eventos que aconteceram depois não me vêm muito a memória, a não ser a despedida no cinema.  Após palavras dos oficiais do alto escalão da Escola, nos despedimos e nossos pais, tios, entes. Eu segurei o choro, mas as lágrimas da minha mãe me tocaram mais do que eu gosto de expressar. Eu senti, de novo, medo. E uma motivação estranha.

A partir dai, não havia mais amor. Não andávamos, apenas corríamos. Seguíamos ordens 24/7, sem parada. Nesta mesma noite, durante uma ‘entrada em forma’, o aluno que me levou ao alojamento veio até mim e me elogiou. Não sei o motivo. Talvez ele tenha notado o quão assustado e confuso eu estava. Seja lá qual for o motivo, gostaria de aqui agradecer. Naquele momento, uma palavra de incentivo foi fundamental para que a cabeça fosse capaz de manter-se no lugar e a visão do objetivo fosse desobstruída. Obrigado.

O que aconteceu na adaptação não será, por mim, contado aqui. Cada um tem sua visão e cada um tem sua lembrança, mas o certo é que todos têm de passar por isso em sua própria maneira. Foram dias difíceis, foram noites mal dormidas. Foram horas de choro, de risos, de dor e de tensão. A única coisa que eu acho válido ressaltar foi quando um dos integrantes da cadeia de liderança disse que iria me desligar e que eu não conseguiria passar da primeira semana. Não sei qual foi a real intenção, mas a este eu também devo meu “obrigado!”, pois eu mantive isto em minha cabeça e eu não desistiria, não mais, por aquilo que me foi dito. Obrigado, novamente.  Aconteceram outros fatos interessantes que ficarão reservados para as conversas dos nossos churrascos de 10, 15 ou mais anos, quando estivermos todos barrigudos (alguns já estão, né, Loureiro?).

No dia da platina, foi a nossa consagração. Ver minha mãe e minha irmã com os olhos embargados ao colocarem as insígnias em meu ombro foi um orgulho imenso. De novo, segurei o choro. Choro que só soltei quando estava sozinho. Bom, tenho alguns orgulhos bobos, fazer o quê?

E hoje, um ano depois, indo para meu segundo ano na EPCAR, lembro-me destes dias com um carinho imenso. Não pude entender completamente o que passei nos dias que aconteceram, mas acredito que amadureci e hoje posso compreender todo o processo. E novos alunos, que hoje começam o que eu comecei naquele 04/02/2012, também compreenderão.

Pude conhecer pessoas incríveis e outras nem tão incríveis assim, mas cada um especial em sua própria maneira. Aprendi, na dor, que a família é a coisa mais importante na vida de um homem e sem este alicerce nada é possível. Que “hierarquia” e “disciplina” não são pilares só do militarismo, mas de toda nossa existência. Que cobrança não precisa excluir bondade. E que bondade não significa fraqueza. Aprendi, também, que uma palavra amiga pode mudar tudo. Tudo. E que nunca podemos esquecer que lidamos diariamente com seres humanos assim como nós, e sempre devemos ver além do que um uniforme mostra.

Eu desejo que esta nova turma ache seu caminho dentro da EPCAR, assim como a minha achou e vem achando. E que cada novo aluno encontre seus apoios e enfrente seus medos, assim como eu pude fazer com os meus.

Que nós todos cheguemos onde queremos e que essa farda não seja apenas um símbolo, mas a real demonstração de que somos pessoas diferentes, com uma vocação especial. Macte animo, generose puer sic itur ad astra.

“Justiça: […] é encarar cada subordinado com a consciência de que todos são seres humanos aprisionados nas suas grandezas e servidões

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*Gabriel Schincariol Cavalcante é aluno da EPCAR do 2º esquadrão, tem 18 anos e é mais bonito que o Aluno Barros. Também é iluminado e não tem muito senso de humor.

4 Respostas to “Ao estagiário da Nascente”


  1. 1 Ronaldo Borgez janeiro 19, 2014 às 1:50 am

    Gabriel meu vai se apresentar agora dia 24-01, é Renan Henrique Vaz Borges…espero que vc sejam amigos…

  2. 2 Saulo Lopo janeiro 21, 2013 às 12:13 pm

    Ótimo texto Schin, vibrei hahaha

    • 3 Prof. Anderson Luiz março 2, 2013 às 2:47 pm

      Excelente texto, Gabriel! Além de estar muito bem escrito, você conseguiu expressar a essência de sentimentos que marcam a vida dos alunos na Epcar. Parabéns.


  1. 1 Alojar site Trackback em abril 1, 2016 às 6:05 pm

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